quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Universidade Federal do Paraná 
 Programa de Pós-Graduação em Ciência Política 
 Curso de Doutorado em Ciência Política 
 Disciplina de Estudos Avançados em Ciência Política 
 Professor: Emerson Cervi 
 Aluno: Francisco José Moreira 

 O presente trabalho pretende esboçar uma análise crítica da obra “Inequality: a Reassessment of the Effect of Family and Schooling in America” , em especial de seus capítulos 1 a 3 e 7 a 9. Ante a sua finalidade de avaliação parcial da disciplina, descuidei propositalmente de preocupações metodológicas pelo que se constitui tão somente em resumo do argumento dos autores e uma pré-definição das questões que pretendo debater em sala de aula.

 A síntese do argumento é a seguinte: embora a maioria dos americanos diga que acredita na igualdade, na verdade tal assertiva comumente se refere à crença na igualdade de oportunidades como sinônimo de justiça, pelo que as políticas públicas que pretendiam uma diminuição das desigualdades sempre pretenderam oportunizar a participação de grupos minoritários nos extratos superiores, e não diminuir a distância entre ricos e pobres, sendo esta a razão de seu fracasso parcial. Além disso, ao definir “custo de vida” não como um valor atrelado à posse de determinados bens e serviços mas sim como o “custo de participação em um sistema social/sociedade” (pág. 05), a consequente conclusão é a de que embora de uma geração para outra possa ser observada uma melhora em termos de acesso a bens e serviços isso não significa mais igualdade na distribuição de recursos se os ganhos das classes superiores também forem significativos. Em suma, “raising the incomes of the poor will not eliminate poverty if the incomes of the other Americans rise even faster” (pág. 6).

 Em seguida, a lógica do argumento é aplicado ao acesso às habilidades cognitivas ensinadas na escola que se pretende sejam medidas através de testes padronizados, concluindo-se que a média tende a aumentar durante as gerações como consequência de uma maior inserção social. Disso tudo, o mais importante é a conclusão de que tal demonstra que pobreza e ignorância são condições relativas e não absolutas e que sua eliminação depende da diminuição da desigualdade, que pode se dar através de duas formas: ou fazendo o sistema menos competitivo diminuindo os benefícios que decorrem do sucesso e os custos da derrota, ou fazendo com que todos entrem na competição em igualdade de condições.

 Segundo os autores, a segunda opção é a que norteou as políticas de “guerra à pobreza” da década de 1960 nos E.U.A, centradas na tentativa de igualar as habilidades ensinadas na escola esperando que consequentemente isso igualasse o “poder de barganha” dos indivíduos quando adultos desenvolvendo um sistema em que “nobody would end up verry poor – or, presumably, very rich” (pág. 7). De outra mão, sua tese é a de que o sucesso ou insucesso econômico dos indivíduos decorre – e portanto depende – muito pouco das diferenças observadas na formação escolar, e muito mais de sorte e de competência específica para a função que vier a desempenhar na vida adulta, raramente possível de ser prevista e, portanto, de ser ensinada previamente de maneira igualitária e medida por testes padronizados. Contudo, o que propõe não é como consequência a impossibilidade de diminuição da desigualdade através de políticas públicas, mas sim que estas deveriam se focar na diminuição das perdas e ganhos e não na tentativa de igualar o ponto de partida, o que embora “could be done in a variety of ways” foi sempre rejeitado “for the simple reason that it commanded relatively little popular support” (pág. 9).

 O interessante é que apesar de algumas conclusões dos autores parecerem num primeiro olhar conservadoras - como ao afirmarem que a desigualdade no processo de escolarização explicar muito pouco da desigualdade na vida adulta e, portanto, concluam pela inutilidade para estes fins das políticas que pretendem equalizá-lo – no fundo sua proposta repousa sobre uma noção de igualdade alargada, e não diminuída, da encontrada nos discursos que sustentam a necessidade de equalização do ponto de partida através da equalização do processo de escolarização. Isto porque afirmam que a igualdade de distribuição de recursos na escolarização é sim benéfica, mas não pelos seus resultados utilitários a longo prazo, mas simplesmente porque parece mais justo que os recursos sejam usufruídos igualitariamente no presente, independentemente do fato de não ter sido demonstrado um vínculo entre maiores orçamentos e melhor desenvolvimento de habilidades supostamente tidas como desejáveis pelos testes padronizados. Portanto, embora afirmem que “We found no evidence that differences between schools contributed significantly to cignitive inequality” (pág. 254), e que “the evidence suggests that equalizing education opportunity would do very little to make adults more equal” (pág. 255), tal não significa que as tentativas de equalização do processo de escolarização não sejam desejáveis por outros motivos, propondo que “we think it wiser to evaluate schools in terms of their immediate effects on teachers and students, wich appear much more variable” (pág. 256).

 Em suma, como sua conclusão é a de que tentativas de mudanças em instituições marginais do sistema como a escola não são capazes de alterar a desigualdades econômicas (pág. 265), seu argumento possibilita pensar-se em formas mais radicais de igualitarismo, como a proposição de parece mais justo que aqueles que optarem por permanecer na escola até a universidade arquem com o custo de sua formação através do acesso presente a um fundo público ao qual reverterão seus rendimentos futuros (pág. 39 – pág. 260) ou até mesmo a criação de uma forma de seguro compulsório que assegure através da taxação do excedente de uma pré-determinada expectativa de média de rendimentos que ninguém receba menos recursos do que a metade desta mesma média (pág. 230), que garantiria que todos permanecessem acima da linha da pobreza, calculada sempre como sendo a metade do “custo de vida”; definido este, por fim, como já dito acima, não como um valor atrelado à posse de determinados bens e serviços mas sim como o “custo de participação em um sistema social/sociedade”, e sempre medido em relação às condições médias do no presente (pág. 05).

 Segundo os autores, embora a proposta de garantia de igualdade através de um seguro compulsório possa parecer absurda num primeiro momento, “the principal objection to this strategy is not economic but political” decorrente do fato de que os americanos “view taxes as a necessary evil, not as na instrument for making the distribution of income more equitable” (pág. 230). A mesma proposta de diminuição da desigualdade através da instituição de uma espécie de seguro é demonstrada como teoricamente crível de maneira detalhada por DWORKIN (2005) em obra também dedicada ao estudo da igualdade nos E.U.A, que assim como os autores também foca seu trabalho em uma noção de igualdade alargada como acima definido. Contudo, o que quero trazer da obra citada para a presente discussão são as considerações constante de seus capítulos 11 (“Ação Afirmativa: funciona?”) e 12 (Ação Afirmativa: é Justa?), em que Dworkin demonstra, sustentado em estudo empírico de Willian G. Bowen cujas conclusões “contradizem premissas e declarações que se tornaram matéria-prima do debate sobre a ação afirmativa na realidade” (pág. 548), que políticas de ação afirmativa para negros no ensino superior indubitavelmente diminuíram a desigualdade e, especialmente, que a “justiça” da seleção de discentes nas universidade decorre mais da aptidão do mecanismo de seleção em identificar aqueles mais aptos a atingir as finalidades da instituição (que nem sempre são só econômicas e que podem incluir, por exemplo, a promoção de uma sociedade mais igualitária e miscigenada) do que de se focar em realizações passadas (como resultados em testes padronizados e em currículos) e posse ou não de talentos ou habilidades presentes. “Assim, a ação afirmativa [...] não compromete em hipótese alguma o princípio de que só se devam conceder vagas com, base nas qualificações legítima e apropriadas. Nenhum aluno tem direito a uma vaga na universidade devido a realizações passadas ou virtudes, talentos ou outras qualidades inatas: só se devem julgar os alunos pela probabilidade de contribuição que cada um deles, em combinação com outros selecionados pelos mesmos critérios, fará para as diversas metas que a instituição escolheu legitimamente” (pág. 572).

 Destaco a dimensão de legitimação das ações afirmativas defendida por Dworkin porque esta me parece estar ausente dos correntes debates e políticas públicas de ações afirmativas no Brasil, que ao não pretenderem se legitimar em supostos fins outros que não a inclusão econômica de parcela da população historicamente marginalizada acabam por se apresentarem como assemelhados àquilo que nos EUA constiuíram “as primeiras formas, ainda toscas, de ação afirmativa, tais como o sistema de quotas” (DWORKIN, 2005 - pág. 573). Atualmente, a Suprema Corte Americana entende que o critério de pertencimento de raça não pode ser o único a ensejar a seleção do indivíduo ao ensino superior. Em suma, “Nas versões contemporâneas de ação afirmativa nas admissões em universidades, porém, não se usam quotas. {...} Ninguém é aceito ou excluído simplesmente devido à raça” (DWORKIN, 2005 – pág. 573). 

Contudo, não se pode perder de vista as peculiaridades do processo de seleção nas universidades brasileiras, que tradicionalmente selecionam seus discentes através de exames supostamente meritocráticos e padronizados, e mesmo tentativas de extinguir ou mitigar o peso da seleção através dos vestibulares reproduzem a mesma lógica de medição de supostas “habilidades” padronizadas, como no caso da adoção do Exame Nacional do Ensino Médio como critério parcial ou mesmo como único critério de admissão. O que quero dizer é que ainda que num primeiro olhar o sistema brasileiro de estabelecimento de quotas – seja por iniciativa das Universidades como no passado, ou como decorrência do advento da Lei 12.711/12 – pareça se assemelhar as formas tidas por Dworklin como “toscas” de política afirmativa, o fato é que nenhuma universidade brasileira seleciona discentes simplesmente devido à raça, já que ainda subsiste a necessidade de comprovação de habilidades mínimas em testes padronizados. De outra mão, contudo, a sobrevivência de tais testes padronizados como mecanismo de seleção revela nosso apego à noção tradicional de que a seleção para ser justa deve levar em conta habilidades adquiridas no passado ao menos parcialmente, ficando em segundo plano o salutar argumento de que tais políticas são positivas simplesmente porque miscigenaram um espaço até então tradicionalmente homogêneo ou porque atingem qualquer outro fim social oficialmente pretendido pela instituição de ensino.

 Por fim, quero destacar também que normalmente a posição dos indivíduos em relação às políticas e ações afirmativas vinculadas a raça é extremamente polarizada, refletindo, portanto, mais o apego irrefletido a uma noção de igualdade bastante difusa - quando não confusa – do que uma análise ponderada dos ganhos sociais diretos e indiretos que propiciam. Isso se revela de grande importância porque a depender das peculiaridades das regras de seleção os resultados em termos coletivos e sociais podem ser bastante diversos. Neste sentido CERVI (2.013) demonstrou que alterações em regras internas do processo seletivo – a adoção das quotas para negros e estudantes do ensino médio desde a primeira ou só na segunda fase do vestibular – acarretaram em diferenças significativas no aproveitamento de vagas “reservadas”. Também demonstrou - e aqui a inferência mais interessante e a principal conclusão do artigo e que justifica seu título – que tais alterações acarretaram em resultados menores do que os esperados, mas também em resultados que embora não previstos são também relevantes do ponto de vista da inclusão de grupos minoritários. Segundo CERVI (2.008) “O principal deles e o efeito distinto que gerou na proporção de sexo entre os aprovados. [...], podendo-se dizer que uma política afirmativa racial e social acabou se transformando em uma política afirmativa de gênero (pág. 66).

 E em decorrência das regras sobre a substituição de vagas em caso de não ocupação por seus pretensos primeiros destinatários, outro resultado também inesperado foi que “Da transferência de vagas remanescentes entre cotistas raciais e de escola publica resultou o fato de que em todos os concursos o percentual de aprovados por escola publica superou o limite dos 20% de vagas iniciais. Isso porque uma parte dos cotistas de escola publica [...] ocupavam as vagas que “sobravam” das cotas raciais. [...]. Dai se conclui que os candidatos por cota de escola publica foram os principais beneficiados pela política afirmativa em função do baixo percentual de ocupação da cota racial.” (pág. 84).

 Apoiado no estudo de CERVI (2.013) também é possível invalidar a opinião corrente no senso comum de que os negros e estudantes de escola pública estariam diminuindo sensivelmente a participação dos tradicionais selecionados por critérios meritocráticos, já que “Enquanto a universidade aumentou em 21,7% o numero de vagas ofertadas no período em analise, o crescimento percentual de mulheres pretas e pardas aprovadas foi proporcionalmente maior, ficando em 161,2% e 115,0% respectivamente. Como contrapartida a esse crescimento, mulheres brancas apresentaram uma participação proporcional de -8,7% entre as aprovadas. Ou seja, a obtenção de resultados que permitiram mais do que dobrar o numero de negras na universidade teve como contrapartida uma redução de menos de 10% de brancas. As diferenças entre esses números mostram como políticas compensatórias podem apresentar resultados menos dramáticos do que o esperado para uma efetiva ação inclusiva. O crescimento nas aprovações de homens negros, em torno de 70% no período, também ficou bastante acima da redução proporcional de -7,7% de homens brancos entre os aprovados nos concursos vestibulares. (pág. 85 - grifei).

 JENCKS, Christopher. “Inequality: a Reassessment of the Effect of Family and Schooling in America”. New York: Harper Books, 1972
 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: teoria e prática da igualdade. São Paulo: Martins fontes, 2005. BOWEN, Willian G.; BOK, Derek. The Shape of the River: Long-Term Consequences of Considering Race in College and University Admissions. Princeton: Princeton University Press , 1998.
 CERVI, Emerson. Ações afirmativas no vestibular da UFPR entre 2005 a 2012: de política afirmativa racial a política afirmativa de gênero. Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília, maio - agosto de 2013, pp. 63-88.